Sem inteligência e sensibilidade não há solução

Inteligência emocional

Por Ronaldo Souza

Há cerca de 30 anos li quase todos os livros de Roberto Freire.

Não, por favor, não pense que falo do político, esse traste humano que perambula pelo vazio da vida, no éter da insignificância e da abjeção humana.

Falo do psiquiatra, jornalista e escritor que criou a Soma, uma terapia baseada no anarquismo e nas ideias de Wilhelm Reich, psicanalista austríaco.

Um homem brilhante, de inteligência e sensibilidade perturbadoras.

E toda vez que inteligência e sensibilidade chegam a esse nível, surge ali alguém perigoso para os padrões da nossa sociedade.

Seu livro, “Sem tesão não há solução”, era mais um em que ele exercitava o seu jeito provocador e estimulante e ainda que num primeiro momento o título possa nos remeter a pensamentos no campo da erotização, até porque uma característica de Freire, não era este o tema.

Ia além.

Lembrei-me dele no momento em que procurei dar um título ao meu texto, que divido em duas partes. A primeira antes do interessante texto de Gustavo Conde (músico, linguista e professor) e a segunda depois.

Talvez mais facilmente num músico e linguista caminhem de mãos dadas a inteligência e a sensibilidade, características fundamentais ao ser humano e que estão em falta nos tempos atuais.

E quando inteligência e sensibilidade caminham de mãos dadas é difícil, muito difícil, que conviva no mesmo ambiente o preconceito, um dos grandes males da raça humana.

O preconceito, além de desumanizar, embota a mente das pessoas e tira delas a capacidade de pensar e refletir.

Ao ser inferiorizado pelo preconceito nenhuma virtude é possível.

Como atribuir inteligência ao negro, um ser inferior?

Como ver competência no nordestino, uma sub-raça?

Por isso, busquei Roberto Freire para, roubando-lhe a ideia contida no título do seu livro, construir a estrutura do meu texto e dizer; sem inteligência e sensibilidade realmente não há solução.

Neste texto do músico e linguista Gustavo Conde, vi as duas juntas e o professor Gustavo Conde as apresenta de forma bastante didática.

Quando se faz uma postagem de texto que não é seu não significa necessariamente que é exatamente o que você escreveria.

Mas, sem dúvida, com este concordo quase que inteiramente.

E por isso farei alguns comentários ao final dele.

Volto lá embaixo.

O primeiro dia do “Ano Lula”

Lula segue

Por Gustavo Conde*

Dia pródigo para falar de Lula. Todo mundo só pensa em Lula, seja para odiar, seja para amar. Eu tento pensá-lo como um homem, um político, um estrategista, um formulador, um ex-presidente. Sem ele, não existe história do Brasil de 1978 para cá.

Odiar Lula é um exercício de preguiça intelectual. É importante criticar todo e qualquer protagonista político mas com argumentos, não com rótulos fáceis e chavões.

Mas, se odiar é ruim, a leitura errada é pedagógica. Devidamente desconstruída, ela ilumina processos de interpretação.

Nesse sentido, é possível reavivar uma clássica leitura equivocada de Lula, a que o enquadra como “socialista”. A esses sensíveis leitores é licenciado lançar um olhar de estupefação, pois até a resposta retórica e brincalhona de Lula nos anos 80 chegou a os ofender: “sou metalúrgico”. Explicar a piada talvez não seja uma opção, sobretudo uma piada tão sofisticada.

A origem política de Lula é o sindicato. Não tem nada de romântico, nem de intelectual, nem de salvacionismo, nem de utopia. O socialismo é que foi atrás de Lula, porque Lula o aceitou e o compreendeu melhor que os próprios “socialistas”, em grande medida.

Qual socialista no mundo produziu uma política pública como a do bolsa-família (que, mais do que sua função ética de levar comida na mesa do pobre, ainda incendiou a economia, fazendo o país sair daquele marasmo econômico da era FHC)?

Qual socialista no mundo foi tão exageradamente democrático, perdendo três eleições majoritárias e, ainda assim, submetendo-se a mais um processo eleitoral?

Qual socialista no mundo teve 258 milhões de votos ao longo de 40 anos de vida pública (e que, pasmem, continua liderando pesquisas de opinião)?

Qual socialista no mundo foi tão perseguido pela imprensa, pela elite, pelo racismo, pela justiça e pelo ódio?

Qual socialista no mundo dialogou com tantas forças do tecido democrático com tanta desenvoltura e resultados: empresariado, movimentos sociais, entidades religiosas, sindicatos, imprensa, organizações não governamentais, sociedade civil, estudantes?

Qual socialista no mundo acumulou 300 bilhões de dólares de reservas internacionais?

Qual socialista no mundo pagou uma das maiores dívidas externas do planeta?

Qual socialista no mundo emprestou dinheiro ao FMI?

Qual socialista no mundo criou um banco para fazer frente ao FMI?

Não se trata de colocar o socialismo em xeque, mas apenas de restituir alguma cifra de realidade ao argumento. Todo intelectual sério sabe que Lula nunca foi “socialista” na acepção clássica do termo e que isso é um dado fantástico: não é preciso ser socialista para lutar pela igualdade e pela democracia.

Lula é a prova de que a gestão pública não aceita a burocracia do pensamento acadêmico como elemento irradiador de políticas. Isso não é o papel de um líder histórico. Um acadêmico no poder é um desastre da natureza.

Cargos da dimensão de uma presidência de um país continental em desenvolvimento não são um trampolim carreirista qualquer: trata-se de uma responsabilidade que transcende as ambições chãs e desvirtuadas da classe média, por exemplo. Compreender essa dimensão é tarefa hercúlea para este segmento, cognitivamente falando.

Essa leitura, no entanto e ainda que equivocada, é realizada por “quase simpatizantes” de Lula, em última análise. Uma de suas consequências é aparelhar o discurso conservador: ela municia os mais viscerais detratores de Lula que usam o argumento da “traição ao socialismo” como elemento gerador de contradições em todo o campo da esquerda.

Essa faixa ‘pequeno-burquesa’ fantasia que Lula deveria ter sido um ‘simulacro’ de Fidel Castro, que ele deveria ter “eliminado” seus adversários políticos.

Ora, ora, ora. Curioso ver como o caudilho autoritário não está em Lula, mas em seus críticos – e na imprensa. Reclamam que Lula fez alianças com coronéis, mas o que afinal eles queriam? Que Lula expulsasse os coronéis do país? Os coronéis do PMDB?

É isso que fica subscrito no pensamento radical de ambos os extremos do espectro ideológico. A solução que eles eventualmente oferecem ao embate político é ‘eliminar’ o adversário.

É por isso que a democracia não é para os fracos. É por isso que a democracia exige coragem e humildade ao mesmo tempo. É por isso que eles não entendem a democracia, por assim dizer.

Lula é uma esfinge para esses anti-analistas, mestres em diferentes níveis na arte da não argumentação. Para eles, tudo é rótulo, tudo é estereótipo, tudo tende ao sentido único. Eles pouco entendem o que é racismo, quanto mais o que é política.

A história, no entanto, não é uma donzela recatada e do lar. Ela não segue a lógica primitiva dos seres não argumentativos. A história gosta de conteúdo.

Para a história, o golpe é só um elemento narrativo extremamente poderoso. Um antissujeito, uma perturbação, um “tranco” semiótico que prepara a retomada da progressão e dos protagonismos das personagens principais.

E uma personagem de narrativa histórica que se preze não pode ser “transparente”, visível a todo e qualquer observador. Ela exige uma face enigmática, esfíngica, caso contrário anula-se o elemento de suspense.

Tudo isso só para dizer – aos que insistem em não compreender Lula – a seguinte dica de ano novo: continuem não compreendendo Lula. Ele se alimenta da não compreensão de vocês.

*Gustavo Conde é músico, linguista e professor. Lida com teorias do humor e com os processos de produção do sentido político. É autor do Blog do Conde, espaço de discussão de temas políticos, acadêmicos e literários.

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Aos comentários:

1. Odiar Lula é um exercício de preguiça intelectual.
É sim. A preguiça intelectual está em todos os campos e segmentos, mas esta não é a principal razão. Entre algumas razões que explicam o comportamento atual, o preconceito ocupa o primeiríssimo lugar.

2. É possível reavivar uma clássica leitura equivocada de Lula, a que o enquadra como “socialista”. A esses sensíveis leitores…
Aqui está um complemento à primeira questão. Chamar Lula de socialista ou comunista (mais frequente) não é preguiça intelectual. É burrice mesmo. Lula jamais foi e jamais será comunista. Esta é uma afirmação que se pode fazer sem margem de erro. E quando digo isso não vai nenhuma conotação pejorativa aos comunistas, pelo contrário. Ao dizer “A esses sensíveis leitores…”, além da fina ironia, o autor mostra que sabe das coisas e para quem está falando.

3. Qual socialista no mundo…”
Quando o autor faz essa série de qual socialista, mostra a mistura de burrice, preguiça intelectual e outras coisas mais que envolve os anti-Lula. Todas sob o guarda-chuva do preconceito. E quando faz as duas últimas “Qual socialista no mundo emprestou dinheiro ao FMI e qual socialista no mundo criou um banco para fazer frente ao FMI?”, ele estoura os dois neurônios deles.

4. Todo intelectual sério sabe que Lula nunca foi “socialista”.
Todo intelectual sério, não. Qualquer um que pense e conheça minimamente os sistemas políticos.

5. Um acadêmico no poder é um desastre da natureza.
É só olhar para o governo Fernando Henrique Cardoso.

6. ...trata-se de uma responsabilidade que transcende as ambições chãs e desvirtuadas da classe média, por exemplo. Compreender essa dimensão é tarefa hercúlea para este segmento, cognitivamente falando.
Ah, a nossa classe média. Depois reclamam de Marilena Chaui!

7. Para eles, tudo é rótulo, tudo é estereótipo, tudo tende ao sentido único. Eles pouco entendem o que é racismo, quanto mais o que é política.
Atualmente, tudo tende ao sentido único, porque eles pertencem ao seleto grupo do pensamento único, infiltrado em todas as áreas da sociedade e a maior prova da insensatez que reina impune no país.

8. A história, no entanto, não é uma donzela recatada e do lar. Ela não segue a lógica primitiva dos seres não argumentativos. A história gosta de conteúdo.
Cruel, mas a verdade precisa ser dita e absorvida. O grande problema é que para ser absorvida ela tem que ser percebida e a capacidade de percepção anda em baixa.

9. Tudo isso só para dizer – aos que insistem em não compreender Lula – a seguinte dica de ano novo: continuem não compreendendo Lula. Ele se alimenta da não compreensão de vocês.
Só para reforçar.