Que técnica usar para obturar os canais? Final

Dúvida'2

Por Ronaldo Souza

“Que beleza de extravasamento de cimento! Eu tenho que mudar para o AH Plus pra ver se consigo uns assim!” 

Autora (des)conhecida

Sob a perspectiva de que a cura de qualquer patologia está na remoção da sua causa, é incrível como até hoje ainda não se tenha entendido que o objetivo da obturação é selar o canal.

Nada mais.

A rigor, portanto, os materiais obturadores deveriam apresentar características que tivessem como único objetivo torna-los os mais efetivos possíveis na capacidade de selar o canal.

É plenamente compreensível, entretanto, que ao longo do tempo os pesquisadores tenham buscado acrescentar algumas características que poderiam dar aos materiais obturadores outras possibilidades.

Dentro dessa perspectiva, procurar lhes incorporar outras potencialidades, como ação anti-inflamatória, antimicrobiana, estimuladora de mineralização tecidual ou qualquer outra, pode ser considerado como algo benvindo, desde que estas não apresentem qualquer possibilidade de interferir naquela que é a mais importante e que por si só justificaria a necessidade e existência da obturação; selamento.

Tomemos como exemplo os cimentos que contêm na sua composição o hidróxido de cálcio.

Incorporado aos cimentos para que estes também apresentem ação anti-inflamatória, antimicrobiana e estimuladora de mineralização tecidual, pelo menos em tese a possibilidade de afetar a capacidade seladora não pode ser negada.

A maior efetividade do hidróxido de cálcio é decorrente da sua presença em meio aquoso, onde a sua dissociação em moléculas de hidroxila e cálcio permite o elevado pH, algo em torno de 12.5, que confere a essa substância reconhecida ação antimicrobiana, por tornar o ambiente inóspito à sobrevivência microbiana, e mineralizadora, por ativar enzimas como a fosfatase alcalina. Além disso, também lhe é atribuída ação anti-inflamatória.

Contido no cimento obturador, parece pouco provável que o hidróxido de cálcio venha a ter as condições mais favoráveis para a sua dissociação, o que seria mais facilmente alcançado se ele, o cimento obturador, fosse mais solúvel.

Talvez a maior solubilidade do cimento para tornar possíveis as desejadas ações anti-inflamatória, antimicrobiana e mineralizadora atribuídas ao hidróxido de cálcio cobre um preço alto; menor capacidade na sua ação física de selamento.

Não parece recomendável que entre os requisitos exigidos de um cimento obturador de canal esteja a condição de ser solúvel.

Assim, sob essa ótica, de não desconsiderar outras possibilidades, a busca por materiais e técnicas de obturação que promovam o melhor selamento do canal deveria representar a recomendação mais importante para as pesquisas.

Deveria ser esta também a recomendação para o endodontista; adotar materiais e técnicas de obturação que tenham como característica principal a capacidade de promover o melhor selamento possível.

“A técnica de compactação lateral, praticada há mais de 100 anos, é considerada o padrão ouro das obturações. Trata-se de uma técnica simplificada e de fácil execução, sendo a mais ensinada na maioria das universidades nacionais e estrangeiras”.

Essa afirmativa está no capítulo 16-3, Técnicas de Termoplastificação da Guta-Percha, do livro Endodontia, biologia e técnica, de Lopes e Siqueira, 4ª edição, 2015, na página 549.

Como quase sempre ocorre, novas propostas, novos aparelhos e novos materiais surgem como um rolo compressor e levam muitos, muitos mesmo, na corrente da sedução.

Mas as correntes têm uma peculiaridade; não fazem distinção de nada, levam tudo por igual, algo como o famoso “o que cair na rede é peixe”.

Observe como System B, Touch’n Heat, Obtura, Ultrafil, BeeFill, EndoApex e tantos outros são vistos como se fossem diferentes um do outro.

Sem nenhuma preocupação em falar de eventuais detalhes, são todos iguais, o princípio é o mesmo; plastificação da guta percha por aquecimento.

Em termos de técnica, falar de um é falar de todos.

Reforço então que ensinamos a técnica de termoplastificação da guta percha nos nossos cursos de Especialização e Atualização. Ocorre que, além de pequenas diferenças na forma como a ensinamos, ela não é vendida como solução dos problemas e garantia de sucesso com a obturação.

Enquanto alguns fazem com System B, Touch’n Heat…, fazemos com o EndoApex.

Além dela ensinamos a condensação lateral, cone único e  Híbrida de Tagger, que você vê na imagem abaixo.

Obturação com híbrida de Tagger

Mais uma vez sem entrar em detalhes de descrição, sempre que necessário gostamos de usar “técnicas alternativas” (obturação com moldagem de cone, tampão apical, cones rolados…).

Veja este caso, feito por Marcos Cook Fernandes quando ainda era aluno de graduação do Curso de Odontologia da Bahiana (no final de 2016 ele concluiu o Curso de Especialização em Endodontia da ABO-BA).

Obturação com tampão apical e moldagem do cone

Como era um caso de rizogênese incompleta e o ápice estava muito aberto, foi feito um tampão apical com hidróxido de cálcio (setas pretas em C, D e E) e moldagem do cone (seta branca em D). A extensão do tampão foi intencional

Em canais muito volumosos, também pode ser utilizada a técnica dos cones rolados.

Obturação com cones rolados

Curso de Especialização da ABO-BA

Tendo em vista que muitos ainda consideram a obturação o fator determinante do sucesso do tratamento endodôntico, um grande equívoco, as técnicas de obturação recentemente surgidas são colocadas como solução dos problemas anteriormente existentes.

A própria literatura endodôntica muitas vezes se reporta ao tema dessa forma.

Vejamos, no entanto, o que diz parte dessa mesma literatura e que normalmente não chega ao conhecimento do endodontista. Clicando no nome do periódico você chega ao artigo.

1. Outcome of Root Canal Obturation by Warm Gutta-Percha versus Cold Lateral Condensation: A Meta-analysis. Peng L, et al. J Endod Fev 2007 Journal of Endodontic

Nesse trabalho foi feita a comparação entre esses aspectos – dor pós-operatória, qualidade da obturação, resultado a longo prazo e sobre obturação.

“As duas formas de obturação não são significativamente diferentes, exceto na sobre-obturação, que ocorreu numa proporção bem mais elevada com a guta percha plastificada.”

“A comparação entre a técnica da guta percha plastificada e a condensação lateral mostra que o sucesso a longo prazo e a qualidade da obturação são similares.”

2. Effect of Smear Layer on Sealing Ability of Canal Obturation: A Systematic Review and Meta-analysis. Shahravan A et al., J Endod Feb 2007 Journal of Endodontic

“A técnica de obturação ou o cimento obturador não influenciam na qualidade do selamento.”

3. Technical quality of root fillings and periapical status in root filled teeth in Jönköping, Sweden. Frisk, F. et al., Int Endod J. Nov 2008 International Endodontic Journal

“O estudo demonstra melhora na qualidade técnica da obturação ao longo do tempo, sem melhora concomitante na saúde periapical dos dentes tratados.

4. Residual bactéria in root apices removed by a diagonal root-end resection: a histopathological evaluation. Lin, S. et al., Int Endod J. Jun 2008 International Endodontic Journal

Não houve nenhuma correlação entre a qualidade da obturação e a presença de bactérias nas áreas irregulares do canal principal ou túbulos dentinários.

Oferecer ao aluno de Endodontia, seja em que nível for, alternativas de materiais e técnicas de obturação é dever do professor.

Deveria haver, porém, nesse dever, um compromisso; as alternativas têm que ser embasadas em premissas verdadeiras, honestas.

Oferecer a esse aluno alternativas que não tenham esse compromisso e sob a capa da solução dos problemas é farsa, é embuste.

Ah, sim, quase esqueço.

A frase lá em cima:

“Que beleza de extravasamento de cimento! Eu tenho que mudar para o AH Plus pra ver se consigo uns assim!”.

Vi essa frase há algum tempo na internet, em um desses ambientes de desfile de casos clínicos, onde chovem elogios aos casos apresentados.

A colega tinha acabado de ver no referido ambiente, também vi, mais um desses casos conhecidos como surplus, que chamo de embuste em inglês, que o endodontista apresentava com o devido “protocolo”.

Podia-se ouvir o espocar de champanhe dos membros do desfile, brindando a façanha do nobre colega que conseguira um surplus, digno da imagem de uma bomba atômica (não seria para os tecidos periapicais?).

A colega ficou tão excitada que não se conteve e soltou a frase-pérola aí em cima.

É para isso que caminha a Endodontia?

Quantos AH Plus foram vendidos nessa “brincadeira”!

Um bom cimento, com indicações específicas, mas…

Anunciam-se instrumentos, materiais, técnicas, sistemas… que parecem querer ganhar vida própria, independente da Endodontia.

Anunciam-se cursos desse instrumento, daquele sistema, daquele motor…, não mais cursos de Endodontia.

Estão vendendo demais, ficou repetitivo, cansativo.

Cada vez mais ouço colegas se queixarem de que vão aos eventos, no nosso caso os de Endodontia, e veem professores falando de como conseguir excelência no tratamento endodôntico e a excelência se apoia basicamente em instrumentos e materiais. 

Foi preocupante e ao mesmo tempo alentador o que ouvi sobre isso no CIOBA (Congresso Internacional de Odontologia da Bahia), em novembro de 2016.

Preocupante porque as queixas vão na direção de que alguns vínculos no mundo endodôntico se tornaram evidentes e alentador porque, pela quantidade de gente que está percebendo e se manifestando, espera-se que isso venha a gerar uma pressão no sentido de uma correção de rumo.

Que faça a Endodontia, como uma Fênix, ressurgir.