Por favor, expliquem melhor porque eu ainda não consegui entender. Parte 2

E agora

Por Ronaldo Souza

Gosto muito de observar os títulos que são dados aos cursos de um modo geral, palestras e conferências.

Quando ainda estávamos no século XX era muito comum ver títulos como “Endodontia do século XXI”, “A Endodontia do próximo século” e outros dos quais não lembro agora.

Em geral, de uma forma ou de outra, todos nos remetem à tecnologia; “Técnicas avançadas em Endodontia”, “Excelência em Novas Tecnologias”, “Como fazer um molar em 30 minutos”…

Quando vi lançarem um curso de “Especialização em Endodontia Estética” entendi, definitivamente, que tudo é possível.

Claro que não percebem o mal que fazem à Endodontia, mas quem disse que isso tem alguma importância?

Impactar.

Este é o objetivo.

Ouvi dizer que é recomendação dos marqueteiros que orientam alguns dentistas.

Causar.

Sensacional!

“O aluno sairá apto a realizar o tratamento de canal com lima única”.

Você leu esta frase acima no texto anterior, Por favor, expliquem melhor porque eu ainda não consegui entender. Parte 1.

É como anunciavam um curso de Endodontia.

Brilhante.

Não poderia existir uma frase mais perfeita.

Pão e circo.

Ou também não perceberam a que se reduziram alguns cursos?

É um momento nada estimulante da Endodontia.

Real diâmetro anatômico apical

O trabalho de Wu e colaboradores (2002) parece ter deixado muita gente perplexa e despertou o interesse para o tema.

Veja o que eles disseram.

“É duvidoso se a dentina pode ser removida em toda a circunferência da parede do canal pela instrumentação com três limas de maior calibre além da que ajustou no CT”.

Portanto, em março de 2002 Min-Kai Wu e colaboradores já levantavam suspeitas de que o uso de quatro instrumentos pode ser insuficiente para remover o que se deseja de dentina.

Aqui no Brasil, em 2004, Vier e colaboradores publicaram um artigo muito interessante sobre o tema (clique no título do artigo e o veja na íntegra Avaliação in vitro do Diâmetro Anatômico de Canais Radiculares de Molares Humanos, Segundo a Influência da Idade).

Bem detalhado, o trabalho de Fabiana Vier e colaboradores mostrou que o diâmetro médio a 1 mm aquém do ápice radicular dos canais mesiais dos molares inferiores e vestibulares dos molares superiores era de 0,25 mm ou um pouco mais, a depender da faixa etária.

O Prof. Pécora e seu grupo também estudaram o tema e fizeram trabalhos muito interessantes nessa linha e alertaram para o que chamaram de real diâmetro anatômico apical. Você pode ler dois desses artigos publicados em 2005:

  1. Influence of cervical preflaring on apical file size determination
  2. Influence of Cervical Preflaring on Determination of Apical File Size in Maxillary Molars: SEM Analysis

Existem diversos trabalhos que estudam esse tema, muitos deles bem elaborados, com metodologias bem desenhadas e chamo a atenção em particular para os dos autores brasileiros citados aqui. Faço isso pela qualidade dos seus trabalhos, pela homenagem que lhes presto e pelo respeito que tenho por todos eles, os bons e dignos autores brasileiros.

Mas, além disso, vou me permitir falar também de um que publiquei com o Dr. Fernando Ribeiro, cuja metodologia está longe, muito longe, a quilômetros de distância de qualquer coisa que se possa chamar de metodologia bem desenhada e muito menos de sofisticada.

Sem estrutura para fazer trabalhos de pesquisa, ainda mais como os que foram citados, ele foi feito quando eu ainda não era professor e, por isso, foi realizado no consultório em finais de semana no ano de 2000.

Como você vai ter oportunidade de ver logo em seguida ao clicar no artigo, ele foi publicado no Vol. 9 nº 6 – Dezembro 2001/janeiro 2002.

Portanto, antes do que ainda viriam a dizer Wu e colaboradores, “pioneiros” em abordar o tema, tendo em vista que o trabalho deles foi publicado em março de 2002.

Por que faço essas considerações?

Ao ler o artigo de Edward Green (publicado em 1958), percebi que tudo que eu aprendera estava apoiado em bases equivocadas.

Até então a recomendação era a de que os canais mesiais dos molares inferiores e vestibulares dos molares superiores deviam ser instrumentados até a lima 25.

Isso graças a alguns aspectos, entre os quais destaco a pouca flexibilidade dos instrumentos e o fato de que na maioria desses canais a lima que mais frequentemente se ajustava no CT era a lima K #10. Com ela, portanto, iniciava-se a instrumentação.

Como sempre foi bastante utilizada a regra do 1+3 e 1+4, tínhamos ali cumprida a obediência a ela; 10 + 15 – 20 – 25.

Analisando grupos de dentes, Green estudou a configuração anatômica dos canais e mediu o diâmetro no terço apical (a 1 e 5 mm aquém do ápice radicular respectivamente), como você pode ver em B e C na figura abaixo.

Green

Todo o artigo é muito interessante, mas vou me ater às medidas do terço apical, a 1 mm aquém.

Green diz que não encontrou nenhum canal circular a 1 mm aquém do ápice radicular (universalmente o comprimento de trabalho mais adotado pelos endodontistas). Os três formatos de canal que ele observou é o que você vê em B. Como se pode observar, realmente nenhum é circular.

Deles, o que mais se aproxima do canal “redondo”, como muitos imaginam existir, é o primeiro da esquerda para a direita. Vamos usá-lo para a nossa conversa.

Green 2

Por não serem circulares, existem, claro, dois diâmetros no canal, um menor e outro maior. Na figura acima, o N é de narrow (estreito em inglês) e o W de wide (largo, na mesma língua).

Em média, o diâmetro menor dos canais vestibulares dos molares superiores e mesiais dos molares inferiores encontrado por Green foi de 0,23 mm. Como já vimos, os achados mais recentes apontam para 0,25 mm, ou um pouco mais.

Do fato do diâmetro médio desses canais ficar em torno de 0,25 mm podemos tirar algumas informações importantes, mas também aqui vou me ater só a um ponto específico.

Uma lima 25 estaria adaptada aos referidos canais mais ou menos da maneira como você vê na figura abaixo.

Green 3

Digo “mais ou menos” porque a lima não fica ‘certinha’, ‘bonitinha’, como está na figura. Mas, para efeito didático vamos imagina-la assim.

Considerando-se o diâmetro menor do canal (N), a lima 25 estaria tocando em algumas de suas paredes.

Deixo algumas questões para você.

  1. Nessas condições, instrumentar até a lima 25 seria o recomendável para controlar a infecção na luz do canal e nos túbulos dentinários?
  2. Tocando em algumas paredes do diâmetro menor e não tocando nas paredes do diâmetro maior (como se pode observar na figura acima), qual seria a real capacidade da lima de exercer o seu fundamental papel de ação mecânica sobre as paredes e remoção dos biofilmes ali aderidos?
  3. Nas condições descritas, qual seria a sua real capacidade de exercer alguma ação sobre túbulos dentinários infectados?

Segundo Green, a média do diâmetro maior é de 0,36 mm. Assim, a lima que melhor se ajustaria seria a lima 35. Imaginando-a ‘certinha’, ‘bonitinha’, a sua relação com as paredes do canal seria essa da figura abaixo.

Green 4

Sendo assim, caía por terra a ideia de canal bem preparado ao se concluir a instrumentação até a lima 25, porque este era o diâmetro original.

Se alguém me perguntasse se eu tinha noção das limitações da metodologia que usei para fazer o trabalho que publiquei Influência do preparo cervical na ampliação do canal, eu diria que plenamente.

O desejo à época era tão somente o de chamar a atenção para a questão, tendo em vista que ninguém falava disso.

Justamente por não ser professor e sim um profissional de consultório e por isso não ter um laboratório à disposição, a ideia nunca foi fazer um “grande” trabalho, mas chamar a atenção para o problema. Afinal, o trabalho de Green foi publicado em 1958 e até então essa informação não tinha sido devidamente considerada e a maior prova disso é que todos, todos, ensinavam instrumentar até a lima 25 naqueles canais.

Ou ninguém lembra do 1+3 e 1+4?

Como se traduzia isso nos canais mesiais dos molares inferiores e vestibulares dos molares superiores? 10 + 15 – 20 – 25, eventualmente 30, nos canais com polpa necrosada.

Quantos leram o nosso artigo?

Não faço a menor ideia. Nunca procurei saber quantos leem os artigos que publico, mas este provavelmente poucos leram.

Publicado em português, por um ilustre desconhecido, numa revista sem “Qualis”, sem impacto, quantos iriam ler?

E lendo, que valor teria?

Só tinha um detalhe.

Trazia uma informação sobre a qual ninguém falava.

O que você acha?

Se os canais mesiais dos molares inferiores e vestibulares dos molares superiores possuem um diâmetro médio de 0,25 mm, como imagina-los bem instrumentados quando se “leva” a instrumentação somente até a lima 25?

“Ao contrário da crença, nossos resultados sugerem que as limas de 10 a 20 geralmente nem tocam nas paredes dentinárias no CT dos canais mesiais dos molares”.
Marroquín, BB et al., J Endod May 2004

Os dias eram assim.

E como ficamos com a lima 25 se considerarmos os achados de Green sobre o diâmetro maior, cerca de 0,36 mm?

Quantos instrumentos usar?

É o que veremos na parte 3 deste texto.