Por favor, expliquem melhor porque eu ainda não consegui entender. Parte 1

Incongruência

Por Ronaldo Souza

Como é linda a Endodontia!

Linda e complexa.

Como é lindo falar de Endodontia e de sua complexidade.

Dos seus canais tortuosos a nos desafiar. As suas curvaturas, eterno desafio, para o qual a previsibilidade de protocolos bem desenhados se tornou uma arma inigualável.

Da outrora impensável exigência de obturações tridimensionais, finalmente uma realidade desde o advento das novas técnicas e materiais obturadores de última geração.

E como sabemos fazer do trabalhar essa complexidade algo digno dos deuses!

Em outras palavras, como sabemos dourar a pílula.

Para atender aos anseios e necessidades do momento, hoje tudo é 3D em Endodontia.

Fala-se por acaso em outra coisa que não seja obturação tridimensional?

Ah, o que seria de nós se não fossem os recentes avanços da tecnologia?

E depois de tantos avanços tecnológicos para vencer toda essa charmosa e sedutora complexidade anatômica, fomos nós, justamente nós, a geração atual de endodontistas, privilegiada que é, os brindados pelos deuses da Endodontia com a resolução de tantos problemas de maneira tão simples e fácil.

Ah, como nos facilita a vida o pensamento único!

O pensamento que se sustenta a si mesmo, com uma unidade lógica independente, sem qualquer vinculação ou compromisso com outros componentes de um sistema de pensamento.

Sistema de pensamento que nos faz lembrar do sistema de canais.

Sistema de pensamento, cuja elaboração é na verdade um exercício de imaginação, que traria benefícios para o enfrentamento dessa complexidade do sistema de canais radiculares.

A complexidade do sistema de canais que nos ensinaram, cujo reflexo (um deles) é a ausência de toque dos instrumentos em algumas paredes dos canais, mesmo com os de “ultíssima” geração, de repente se torna tão simples.

Na moderna endodontia, onde “o problema são as bactérias e o problema do endodontista é a anatomia”, tudo se resolve com o simplismo do pensamento único; “uma lima, uma hora, uma sessão”.

Eles não percebem a contradição.

Com uma única lima, em uma única hora, em uma única sessão, a única dificuldade do endodontista, a anatomia, é superada como num passe de mágica e o único problema da endodontia, as bactérias, é facilmente controlado.

Tudo se torna simples e fácil.

Diante de problema até então incontornável, o complexo sistema de canais radiculares, o que fizemos?

Buscar na “ultíssima” geração de instrumentos um desenho único jamais visto em qualquer outro instrumento endodôntico.

Um instrumento que nada tenha a ver com qualquer outro na sua configuração. Um segmento cortante que em nenhum momento se compara ao de qualquer outra lima.

Algo, qualquer coisa.

Um instrumento único.

Por favor, não confunda com instrumento de uso único. Aquele que nos países ricos depois de ser usado é descartado; “usou, joga fora” e que, adaptado à nossa realidade, é utilizado algumas vezes, a variar de acordo com cada situação.

Falo de instrumento único, aquele que bastaria somente ele ser usado no preparo do canal para tudo mais ficar para trás.

Limas

Não consegui ver o instrumento com aquele desenho único, jamais visto, que me permitisse imaginar capaz de fazer o que os outros não poderiam fazer. Todos pareciam semelhantes.

Como gosto de fazer, parei então para ver e ouvir. Considero-me hoje um bom espectador e ouvinte.

Leitor também.

Como espectador e ouvinte, vi e ouvi de tudo.

E o que encontrei para ler me pareceu estranho.

O que encontrei para ler vinha como se estivesse, como dizer sem melindrar suscetibilidades… contaminado (não sei, mas tive a sensação de que parece que alguns periódicos importantes estão usando filtros de menor qualidade, que filtram menos).

O que fazer?

Imergir é a solução.

As profundezas nos trarão as respostas.

Mundo afora, as maravilhas do instrumento e do que ele é capaz foram demonstradas.

Após a imersão em águas profundas, curioso, perguntei.

– Mostraram muitas evidências?

– ???

– Vou explicar. Existem evidências e elas foram mostradas de trabalhos demonstrando que o instrumento único toca em todas as paredes dos canais ou pelo menos toca mais do que os das técnicas convencionais?

– Não.

– Existem evidências e elas foram mostradas de trabalhos em animais demonstrando que o instrumento único promove reparo de lesões periapicais melhor ou pelo menos igual ao da instrumentação com as técnicas convencionais?

– Não.

– Existem evidências e elas foram mostradas de trabalhos em humanos demonstrando que o instrumento único promove reparo de lesões periapicais melhor ou pelo menos igual ao da instrumentação com as técnicas convencionais?

– Não.

– O que vocês viram e fizeram quando imergiram no mundo do instrumento único?

– Aprendemos a usar o instrumento.

– Ah, entendi.

Parece que não há mais filtros.

Somente aí entendi a frase que tinha visto anteriormente para divulgar cursos de endodontia:

“O aluno sairá apto a realizar o tratamento de canal com lima única”.

E passei a entender melhor a postura dos periódicos.

Disseram um dia desses que “o problema da Endodontia são as bactérias e o problema do endodontista é a anatomia”.

Com a mania de querer entender tudo, confesso que ainda não entendi.

“Quanto mais instrumentado o canal radicular, menor é a possibilidade da permanência de microrganismos nele”.
Grossman

Assim aprendemos, daí a necessidade de se usar alguns instrumentos.

Mas vamos sair de Grossman, porque, por velho, pior, morto, seria logo taxado de ultrapassado.

“É razoável supor que quanto maior o alargamento menor a probabilidade de que microrganismos permaneçam no canal”.
Mickel AK et al. The role of apical size determination and enlargement in the reduction of intracanal bacteria. J Endod 2007;33:21-23.

Pronto, agora sim. Dito por autores atuais e ainda mais na bíblia, pode-se aceitar mais facilmente.

Mas, observe bem, a frase de Mickel e colaboradores é igual à de Grossman.

Em que fonte eles terão bebido?

A literatura nos ensinou a usar alguns instrumentos em sequência de ampliação dos seus calibres para preparar o canal e disse que mesmo assim não conseguimos tocar em todas suas paredes.

A literatura mais recente vem mostrando instrumentos mais modernos de grande qualidade e ficamos todos entusiasmados com eles. Não é para menos.

Mas veio a frustração. Diz que mesmo com eles também em uso sequencial de aumento de calibre e conicidade, não conseguimos tocar em todas as paredes do canal. De 35 a 40% das paredes dos canais não são tocadas. Em canais ovalados, mais de 50%. Tudo variável, conforme cada situação.

Voltamos para casa arrasados.

Meu Deus, por que tínhamos que ter canais tão complexos, curvaturas tão difíceis de lidar? E, pior ainda, se fosse só um canal, mas não, é o diabo de um sistema de canais, com canais laterais, acessórios, deltas apicais, recorrentes, túbulos dentinários…

Nesse momento de desencanto, com a nossa amada especialidade perdendo credibilidade (você já ouviu falar de Implantodontia?), veio alguém e disse:

Eureka!

Está tudo resolvido.

  1. Usar cerca de 4 ou 5 instrumentos para remover mais conteúdo do canal não deu certo.
  2. Usar cerca de 4 ou 5 instrumentos de qualidade muito maior, com aço assim, assado, desse jeito, daquele jeito, instrumento dourado, azul, para remover mais conteúdo do canal e assim exercer melhor controle de infecção não deu certo.

Então deixemos tudo isso de lado.

Vamos usar só um instrumento!!!

MA-RA-VI-LHA!

“Perdido por um, perdido por mil”, diz o provérbio português, muito utilizado no futebol.

Que se inverta a lógica.

Perdido por cinco, perdido por um.

Se não conseguimos limpar bem com cinco, vamos limpar bem com um só.

???

Nos tempos atuais, nada melhor do que soluções rápidas.

Tudo simples e fácil.

A “técnica” que se sustenta a si mesmo, com uma unidade lógica independente, sem qualquer vinculação ou compromisso com outros componentes de uma linha de raciocínio.

“Técnica” que nos faz esquecer da tal complexidade do sistema de canais que um dia nos ensinaram.

E se nos apresenta charmosa, sedutora, envolvente.

Como resistir ao irresistível?

Vamos ver isso mais de perto?

Na parte 2 deste texto.