O futuro roubado de si mesmo

Futuro abortado

Por Ronaldo Souza

Não é incomum ouvir-se dizer “já vi de tudo na vida”.

É uma forma de falar, não se pretende ser literal.

É claro, porém, que as pessoas que já viveram um pouquinho mais já viram muita coisa, o que pode nos levar a crer que elas não se surpreendem mais com o que veem. Não é exatamente assim.

Eu, que já tenho alguns bons meses de vida, ainda me surpreendo. Surpreendo-me principalmente com o fato de como nos perdemos tão facilmente.

Não vai muito tempo que alguém me disse que ouviu falar de um curso que ensina a fazer tratamento endodôntico para convênios.

Como não ficar chocado?

Vi uma vez na Internet, terra de todos e de ninguém, a propaganda de um curso que me deixou mais uma vez… surpreso.

“Apesar dos diversos cursos que participamos, continuamos praticando a mesma endodontia!! Alguns pacientes se queixando de dores pós-operatória, às vezes não conseguimos atingir o nosso limite de trabalho (forame) e os tratamentos são feitos em muitas sessões causando desconforto e perda de tempo”.

Pelo visto haverá sempre alguém dizendo que ‘continuamos praticando a mesma endodontia!!’.

Sob a ótica do marketing deve ser bem interessante, afinal querem fazer crer que o mundo precisa viver sob a perspectiva tirânica do novo.

Como você reagiria a um médico que com frequência muda o que faz e diz que “agora” está fazendo um tratamento revolucionário? “Não faço mais daquele jeito, está ultrapassado”.

Então quer dizer que tudo que o senhor fazia estava errado?

E aí, você, que parece ser um cara inteligente, continua confiando nesse médico?

Depois de tantos anos, tanto estudo, tanta pesquisa, tanta experiência clínica acumulada, abandonam-se os conceitos estabelecidos pura e simplesmente?

A Endodontia apoiada em conceitos que foram se estabelecendo ao longo dos anos, sob o respaldo de pesquisas e experiências clínicas não serve mais?

Se serve, o que ela diz?

Você sabe, por exemplo, quantos instrumentos devem ser usados para fazer um bom preparo de canal?

Se sabe, parabéns.

Eu não sei.

Conhece aquela “regrinha” antiga que diz que na polpa viva deve ser 1+3 e na necrosada 1+4?

Ela está certa?

Não seria suficiente instrumentar um pouco menos, na polpa viva 1+2 e na necrosada 1+3?

Ou seria necessário instrumentar mais, na polpa viva 1+4 e na necrosada 1+5?

Quer que eu lhe diga uma coisa?

Não faço a menor ideia.

Alguém sabe?

Vou mudar a pergunta.

Tem como saber?

Os canais são todos iguais?

Mesmo grau de curvatura?

Estão igualmente infectados?

Então, gente, tem como saber?

Tem como pretender fazer tudo da mesma maneira?

A despeito de não se saber exatamente quantos instrumentos são, pelo conhecimento existente e pela experiência clínica acumulada você concorda comigo se eu disser que deve haver um mínimo necessário para cada canal para que sejam atingidos os objetivos desejados?

Aí vem alguém e diz.

Basta um.

Baseado em que?

É assim na tora, como se diz aqui no Nordeste?

Você não acha que para avançarmos de forma consistente é necessário que as novas propostas sejam analisadas antes?

A Endodontia sempre foi uma especialidade que se permitiu modificar e avançar como resposta a novos conhecimentos e tecnologias.

Mas precisamos entender que a fisiologia tecidual, a microbiologia e a patologia não se modificam pelo nosso desejo. Podem sofrer mudanças conceituais e de interpretação pelas descobertas que novos conhecimentos proporcionam. São esses conhecimentos que levam ao surgimento de novos instrumentos e técnicas operatórias. Estes existem em função daqueles.

Em outras palavras, não é o surgimento de novos instrumentos que leva ao conhecimento. É o contrário.

É o conhecimento que faz surgir o novo instrumento.

Observe como cada vez mais os instrumentos são melhores.

Que bom, mas eles são apenas ferramentas que permitem pôr em prática o conhecimento adquirido.

As mudanças não são instrumento dependentes.

O instrumento não constrói o conhecimento.

É ferramenta dele.

O conhecimento é senhor da tecnologia.

Volto a aquela professora que por pouco não me atirou pedras. Veja o que ela diz ao anunciar o novo curso de imersão com o mesmo professor convidado em sua cidade:

“Você sabia que aproximadamente 90% dos primeiros molares superiores apresentam 4*canal e que atualmente existe uma lima, a …, da …, de fabricação alemã, capaz de auxiliar você no preparo biomecânico desses dentes de maneira previsível? Venha imergir no mundo da Endodontia Contemporânea. Serão dois dias de grandes inovações. Esperamos você de braços abertos”.

Meu Deus do Céu!

Isso é uma tentativa absurda de induzir as pessoas a pensarem que agora terão a certeza de que o 4º canal será, finalmente, bem preparado.

Previsibilidade.

Esta é uma palavra recentemente descoberta por alguns endodontistas, que a repetem à exaustão.

Tornou-se um mantra.

Mas não pense na palavra “previsibilidade” como você costumava pensar. Algo previsível, que se espera acontecer.

Não.

Já há algum tempo deram a ela um significado muito próprio em Endodontia.

Previsibilidade é a certeza antecipada de sucesso.

E você só a terá com ‘aquele’ instrumento, ‘daquela’ marca.

É venda explícita de instrumento!

Só com aquele instrumento você terá a previsibilidade que é objeto do seu “sonho impossível e assim romper a incabível prisão e ter fim a infinita aflição”. Que me perdoe Miguel de Cervantes, no seu “Dom Quixote de La Mancha”.

Como conceber que alguém mude o conhecimento estabelecido sem oferecer evidências mínimas para isso?

“O tratamento endodôntico é fundamentalmente o manejo clínico de um problema microbiológico” (Figdor D. 2002).

Não é uma questão de natureza mecânica.

E, por favor, não argumente dizendo que a ação mecânica do instrumento é a mais importante.

Não zombe da inteligência das pessoas.

A ação mecânica dos instrumentos é de fundamental importância no ato operatório que representa o tratamento endodôntico e esta, por si só, já deveria ser uma razão forte para não ser negligenciada pelo uso de um único instrumento, seja ele qual for.

Mas essa ação não pode ser vendida como exclusividade ‘daquele’ instrumento.

Estamos acuados e com medo de falar do óbvio?

Existe algum tipo de pressão?

Está se formando uma avalanche pressionadora para que todos falem de um jeito só, mesmo que não sejam tantos assim os que de fato fazem dessa forma?

Ninguém resistirá?

Ninguém se colocará contra essa corrente que se forma com prejuízos evidentes para a formação dos jovens profissionais?

É a ditadura do jeito único?

Tendo em vista que entre nós é hábito venerar autores estrangeiros, vejamos o que diz Martin Trope através de um slide igual ao que ele projetou no Circuito Nacional de Endodontia em Curitiba.

Martin Trope

“Uma lima, uma hora, uma sessão. Como matar uma especialidade”

Isso deveria nos fazer pensar.

Uma vez Chico Buarque disse numa entrevista;

“Não quero o novo pelo novo, mas pelo que de bom ele pode me trazer”.

O novo só porque é novidade?

Recorro ao que disse a nossa professora.

“Venha imergir no mundo da Endodontia Contemporânea”

Professores estão se tornando geradores de necessidades para plateias cada vez mais alheias.

Estão se tornando ilusionistas. 

Como ficou fácil encantar serpentes.

“Ainda que as cobras possam ouvir, são surdas aos sons envolventes mas sentem as vibrações do solo. A flauta do encantador seduz a cobra pela sua forma e movimentos, e não pela música que emite”.
(Encantamento_de_serpentes)

Para onde estamos indo?

Não se discute aqui a qualidade dos instrumentos. Esta é incontestável. Deixemos essa questão de lado, pelo menos neste momento.

Mas vamos observar que a Ciência sempre trabalhou com o tempo.

É impressão minha ou andaram elogiando a Medicina por apresentar estudos epidemiológicos consistentes e não ser esse o caso da Odontologia, particularmente da Endodontia?

Falamos tanto de estudos clínicos randomizados, estudos prospectivos, estudos…

Não precisamos mais deles para propor mudanças tão fortes?

Por não sabermos quantos instrumentos usar para preparar bem o canal, alguém pode simplesmente chegar e dizer “basta um”?

Amém, amém!

Esta é a nossa resposta?

Esta é a Endodontia?

As quebras de paradigmas agora são feitas assim, a golpes de facão?

A lamentar nisso tudo é que há professor que parecia ser um pesquisador em potencial, que falava em necessidade de comprovação científica, mas se deixou levar por cantos estranhos.

Conhecidos, mas ainda assim estranhos.

Sem dúvida, uma postura mais confortável e rentável, mas incompatível com a Endodontia.

Ocorre que muitos já estão percebendo.

E estão comentando pelos corredores da vida.

E dos eventos.

Os holofotes não se apagam de repente e podem manter por tempo indeterminado sob a sua luz aqueles a quem cegam.

Mas como pode ser cruel a ilusão da notoriedade.

Confesso que esperava mais, bem mais.

Esperava, torcia até, que se confirmasse o pesquisador sério que parecia surgir.

Lamentavelmente, porém, tornou-se mais um que se deixou seduzir pelo canto da sereia.

A sedução provocada pelas sereias era através do canto. Os marinheiros que eram atraídos pelo seu canto e se aproximavam o bastante para ouvir seu belíssimo som, descuidavam-se e naufragavam.
Mitologia grega