Em algum lugar do passado

Dúvidas e ideias

Por Ronaldo Souza

Em 2000 ministrei o curso principal de Endodontia em um congresso.

Antecipo o meu carinho por aquele estado, até por razões familiares. Parte da família de meu pai morava lá.

Pelas pessoas da capital, onde ocorreu o congresso, também há algumas razões para me sentir à vontade. Sempre fui muito bem tratado e até com carinho por muitas pessoas.

No outro dia após o meu curso (carga horária de 8 horas, como era comum à época), encontrei uma professora nos corredores do congresso.

Tomei um susto.

Parecia que a qualquer momento a agressão física poderia ocorrer, tendo em vista que a verbal, pelo tom empregado nas afirmativas e contestações, já estava acontecendo.

A indignação da professora tinha origem em dois temas abordados por mim; a importância e necessidade da instrumentação do canal cementário, que à época era chamada de limpeza do forame, e a questão do limite apical da obturação.

Particularmente por conta deste último, era forte a impressão de que a qualquer momento eu seria apedrejado.

Respirei fundo 355 vezes e me controlei.

Aliás, acho que sou até bom nessa arte.

Dois meses depois fiquei sabendo que na hora em que eu dava aula no referido congresso, outra professora, rodeada por seus alunos e alunas da pós-graduação, levantou-se e disse:

“Não estou aqui para ver esse imbecil não”.

E saiu do auditório.

Apesar de ter voltado a aquela bela e acolhedora cidade algumas vezes para ministrar outros cursos, não me lembro de ter visto outra vez a agressiva professora. A das pedras.

Vejo-a 17 anos depois através da divulgação de um recente curso de Endodontia, desses chamados de imersão, na sua bela cidade:

Uma oportunidade para se aprender dentre outras coisas que a técnica de obturação de cone único oferece resultados tão bons quanto as que utilizam equipamentos de custos elevados; que o quarto canal pode ser instrumentado com limas… com eficácia. Que novas limas como a… possibilitam tratamentos endodônticos mais previsíveis e com índices quase nulos de fratura”.

A reflexão parece continuar não fazendo parte das preocupações da professora.

O que me causa certa perplexidade, haja vista que geralmente as pessoas que têm alguma ligação com as áreas básicas, particularmente a Patologia, costumam refletir.

Deixemos de lado as maravilhas do instrumento e foquemos em algo mais.

Para usar a expressão utilizada por ela, também afirmo que a técnica de obturação de cone único (e aqui incluo a técnica da condensação lateral) oferece resultados tão bons quanto as que utilizam equipamentos de custos elevados…”.

O professor de Endodontia pode dizer o que quiser nas suas aulas. Que a obturação com “equipamentos de custos elevados” é isso, é aquilo, que é mais sofisticada, que tem “surplus”, que extravasa material obturador pelos poros do paciente, o que ele quiser.

Mas não pode continuar dizendo a seus alunos que os resultados são melhores do que as técnicas que não usam “equipamentos de custos elevados”.

A literatura não conseguiu apresentar trabalhos que respaldem tal afirmativa.

Por outro lado, equivoca-se também o professor que reza pela cartilha do vedamento hermético e preconiza a técnica do cone único.

Falar de vedamento hermético em Endodontia já é um equívoco por si só, no qual alguns insistem. Por quanto tempo não sei.

Mas, sob a perspectiva do vedamento hermético, se há uma técnica que não deveria ser preconizada é justamente a do cone único.

Ela apresenta possibilidade maior de selamento apical mais pobre do que outras propostas.

E isso não é difícil de se comprovar.

E aí volto à professora.

Tendo em vista que o grupo do qual ela se tornou seguidora incondicional “está revendo o papel da obturação”, depois de ter rejeitado abertamente a ideia, é bem possível que em breve a veremos fazer a divulgação de um curso de imersão assim:

Uma oportunidade para se aprender dentre outras coisas que a técnica de obturação, seja ela qual for, oferece resultados tão bons quanto as que utilizam equipamentos de custos elevados…”.

Estarei na primeira fila para aplaudir e dar as boas-vindas pela chegada à Endodontia que ainda está por ser entendida e não somente executada com os bons instrumentos que tanto a encantam.

Mesmo sabendo que há 17 anos ela e sua colega me atiraram pedras por tentar fazer exatamente isso, um convite à reflexão sobre o que significa de fato cada etapa do tratamento endodôntico.

Só não pode, professora, é querer lançar com o time do “estamos repensando o papel da obturação” como se fosse algo próprio e a descoberta mais importante desde que Copérnico tentou mostrar (e Galileu confirmou) que o Sol era o centro do Sistema Solar e não a Terra, como se imaginava antes.

Até porque, por ironia do destino, tenho a senhora como testemunha (e sua colega também) de que a verdadeira história não é essa.

Assumir a paternidade com a falácia do “estamos repensando o papel da obturação”, não.

Aí também estarei na primeira fila.

Mas não para aplaudir.

Não atirarei pedras.

Só porei os pingos nos is.

Pra não dizer que não falei de flores

Abordado por um professor nos corredores do mesmo congresso, percebi que ele também não concordara com meus pontos de vista.

A maneira de fazer as críticas, porém, foi bem diferente.

Final de tarde, num stand que já estava vazio (será que ele vai lembrar dessa conversa?), discutimos, trocamos ideias, argumento vai, contra-argumento vem, um papo legal.

Já tínhamos boa relação, que só fez melhorar com o tempo e tenho por ele respeito e carinho. Sei que é, com justiça, muito querido na terra onde mora (não é a mesma em que nasceu).

Anos depois terminou sendo personagem de outro episódio, sobre o qual nunca comentei com ninguém. Nem com ele.

Diante da não citação do meu nome em nenhum momento numa discussão sobre ampliação foraminal (como alguns chamam) ocorrida num desses fóruns de Endodontia na internet, ele foi um dos dois únicos (o outro é de São Paulo) a fazer uma intervenção citando o meu nome:

“A bem da verdade, a primeira vez que ouvi falar de limpeza do forame foi com meu amigo da Bahia, Ronaldo Souza”. Disse ele.

“A primeira vez que ouvi falar desse procedimento foi com o professor Ronaldo de Souza (esse de não existe no meu nome) da Bahia”. Disse Alex Otani, de São Paulo.

Peço desculpas por não citar o nome do primeiro. Se o fizesse, a identificação da cidade onde ocorreu o congresso acima referido e consequentemente das professoras seria imediata.

Não devo e não há porque fazer isso.

Entretanto, não há como não reconhecer e elogiar a elegância da postura assumida por eles a meu favor no episódio da discussão sobre ampliação foraminal. Por isso, a minha gratidão.

Só para ilustrar, nesse episódio em que o meu nome foi, digamos, por um lapso de memória inadvertidamente esquecido, colegas da Bahia que aprenderam o procedimento comigo foram acometidos por uma amnésia temporária e por isso permaneceram calados, nesse interessante e nobre jogo de esconde-esconde.

Um deles diz por aí que aprendeu com um protocolo atribuído a uma famosa faculdade (por sinal uma importante faculdade, com bons professores), que ele faz questão de citar, como se dela tivesse sido aluno de pós-graduação.

Talvez eu deva entender que ele não está errado por não dizer que aprendeu comigo, pois, de fato, jamais ensinei a fazer ampliação foraminal, por considerar um grande equívoco.

Ensino a fazer instrumentação do canal cementário, com objetivo bem definido.

Torço para que ele consiga perceber que há uma diferença considerável entre os dois procedimentos.