A justa indignação e determinação de uma endodontista

Cabeça quente

Por Ronaldo Souza

Não foram poucas as vezes em que falei aqui das pressões existentes para que todos façam aquilo que ficou conhecido como Endodontia em sessão única.

Critiquei a pobreza do simplismo do pensamento único e para contextualizar usei uma frase de Martin Trope;

“Uma lima, uma hora, uma sessão. Como matar uma especialidade”.

Já falei também dos relatos que tenho ouvido dos próprios colegas, geralmente recém-formados, sobre esse tema, alguns dizendo inclusive que são pressionados até em entrevistas para empregos para fazer tudo em sessão única.

Não há nada melhor para donos de clínicas, empresários que são, do que reduzir custos. A visão empresarial não costuma abraçar as preocupações da área da saúde.

Ao mesmo tempo, também já comentei o que colegas do grupo do qual faço parte me contam de relatos semelhantes que com frequência ouvem.

Está claro, portanto, que sei muito bem o que vem acontecendo nesses últimos anos e não há nenhuma surpresa nisso.

Desta vez, porém, é diferente.

Não tinha ainda um depoimento em que a colega confessa por escrito sua indignação com essa pressão.

E mais.

Como você verá adiante, me autoriza a dizer o seu nome.

Polyana Firmo Silva França foi nossa aluna no Curso de Especialização (ABO-BA) na turma de 2004.

Na noite de 23 de outubro de 2017, há pouco mais de dois meses, ela me enviou a pergunta abaixo pelo Messenger.

– Boa noite Professor!! Tudo bem? Há algum tempo venho quero perguntar, mas ficado meio sem jeito, mas depois de sua postagem sobre o Hidróxido de Cálcio resolvi perguntar. Uso o hidróxido de cálcio sim, faço instrumentação automatizada e nem sempre em sessão única. Há algum tempo conheci o Material X, no Evento Y, achei bem prático e fácil de controlar o preenchimento do conduto por radiografia. O que o senhor acha deste produto. Gostei de alguns resultados obtidos com ele. Mas uma colega que está fazendo curso com um professor aí de Salvador disse que ele falou horrores sobre o tal produto. Não é mesmo bom?

Abraços! Sua aluna e admiradora.

É claro que respondi procurando orienta-la quanto ao material, mas o “depois de sua postagem sobre o Hidróxido de Cálcio resolvi perguntar” me deixou intrigado. Fiz então a seguinte pergunta:

– Posso usar esse seu comentário para escrever um texto? Não se preocupe que não colocarei seu nome (a não ser que você autorize). Você já deve ter observado que nos meus textos eu não cito nomes, a não ser quando é para elogiar.

– Claro que pode utilizar minha pergunta para elaborar um texto, se sentir necessidade de utilizar meu nome de maneira alguma me oponho, tudo bem. Gostei do Material X pela praticidade que ele proporciona, o fato de a agulha dele ser bem mais fina que a do Material Z, tbm me atraiu, pois consegue depositar o hidróxido de cálcio mais próximo ao ápice( resguardando os 3 mm indicados ) e de maneira mais uniforme. Quanto a agulha ela realmebte entope com facilidade, para evitar costumo deixar uma seringa estéril com soro fisiológico e passo pela agulha.  Ao conhecer o produto e notar a otimização de tempo que ele oferece o apresentei a uma colega que trabalha comigo no CEO ( Centro de Especialidades Odontológicas) do município onde cuidamos da parte endodôntica . Lá fazemos uso sempre do Hidróxido de Cálcio PA. Ela por sua vez, está fazendo um curso de instrumentação automatizada em Salvador e comentou com o Professor, não sei realmente qual a opinião dele sobre o Hidróxido de Cálcio em si, mas quando ela perguntou sobre o Material X o comentário dele foi que não serve para nada, era dinheiro jogado fora. Questionei se ele havia citado alguma pesquisa para basear esse comentário. Ela não soube me dizer.

– Você se sente “pressionada” por “ainda” usar hidróxido de cálcio ou conhece alguém que faz esse tipo de pressão e por isso fez a pergunta sobre o Material X no Messenger e não na parte de comentários do facebbok? Tenho ouvido vários relatos de pessoas com pouco tempo de formadas que se queixam desse tipo de pressão e ficam com vergonha de dizer que usam hidróxido de cálcio (por isso pensei em escrever o texto a partir de sua indagação).

– A resposta é sim, me sinto. E quando isso ocorre procuro entender o porque daquela linha de pensamento. Como o professor que criticou mas não apresentou argumentos que baseassem seu descontentamento com o material. Muito mais que a pressão pelo uso do hidróxido de cálcio é a pressão por se fazer endo em multiplas sessões. Há alguns anos atrás fui assistir a um mini curso do Prof, ( me sentirei a vontade em dar nomes aqui, pois sei de sua discrição) Fulano de Tal (claro que aqui eu, Ronaldo, omito o nome), gosto da postura e conceitos que ele passa, mas em determinados momentos o vejo muito radical. Nesse curso em dado momento ele questionou a nós em quantas sessões realizávamos uma endo de molar. Após as respostas, diagnosticou: se vc faz em duas sessões está perdendo dinheiro, se faz em três ou mais é vc quem está pagando ao paciente para realizar o tratamento. Achei isso forte e fiquei feliz de estar no interior onde não percebemos essa pressão de forma tão maçante, imaginei que nos grandes centros alguns colegas devem sentir -se constrangidos de pedir o paciente para retornar para outra sessão.

Se vc faz em duas sessões está perdendo dinheiro, se faz em três ou mais é vc quem está pagando ao paciente para realizar o tratamento“.

SEN-SA-CIO-NAL.

A quantidade de consultas se baseia no ganhar dinheiro.

É preocupante, mas isso se ouve cada vez mais nos tempos atuais.

É possível que agora alguns entendam melhor a minha preocupação com essa questão.

Está chamando a atenção de tal maneira que, além de incomodados, alguns já perguntam; “há algum interesse por trás disso?”

Aliás, essa suspeição da necessidade de matar ou morrer pela sessão única é cada vez mais relatada.

Observe que mesmo quando se refere a um professor de quem gosta, cujo nome, claro, omiti aqui, Polyana já aponta para o que chama de postura muito radical dele e busca uma razão para isso.

Polyana Firmo Silva França mostra que é uma endodontista que aprendeu a separar as coisas e determinou o seu próprio caminho.

O respeito que demonstra pelos seus pacientes de alguma forma chega a eles.

O tempo se encarrega de nos mostrar se a nossa escolha foi a mais adequada. Fazendo agora 14 anos de especialista, a indignação de Polyana com o que tentam lhe impor e a determinação de trilhar o seu próprio caminho sugerem fortemente que ela está de bem com ela mesma. 

Colegas seus perceberão a força e a importância que profissionais como ela possuem e terão nela um exemplo a ser seguido.

Outros já começam a perceber a maior frequência de pacientes com pós-operatório sintomático, edemas faciais e necessidade de retratamento dos canais tratados, o que faz com que as desconfianças ganhem mais força.

Mais uma vez, parece ser uma questão de tempo para que a ficha caia.